Limites

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17.3.11

(Ponto de) Inflexão



Também poderia chamar esse conjunto de linhas de "Curvatura" por dar tanto a expressão do peso que verga quanto da mudança de rota. Preferi a "Inflexão" porque, apesar de significar o mesmo, começa com as mesmas letras de "introspecção" e termina com as de "reflexão", o que de fato pretendo fazer": refletir para dentro.

À medida que a vida passa, experiências sucedem-se e fatos suicidam-se à minha frente. Sempre me disseram que quanto mais somos experimentados, maior a sabedoria e sempre um dia terminamos por entender dores e amores, a diagnosticar más intenções, a superar negações e frustrações, a sermos cada dia melhores, mais compreensivos e compassivos.

Por enquanto tenho a leve impressão de que a coisa funciona um pouco diferente. Quais não são os "a40tados" ou mais que, sólidos em suas carreiras e com as famílias definidas [definidas muitas vezes tragicamente por casamentos dilacerados - desfeitos precocemente ou carregados ao peso de correntes presas ao pescoço], não têm a mínima ideia de quanto tempo já caminharam perdidos no meio da mata e o quanto esse enclausuramento lhes custou de vida plena. Quantos e tantos, já na "idade do aguenta", não conseguem discernir marcas de cicatrizes mas gabam-se do peso dos anos, dos cabelos já apagados e das rugas de infelicidade que carregam como desculpa para seus rompantes de desamor.

Ainda não haviam me dito que a vida não é linear, no máximo cochicharam que ela traz surpresas. Sempre ouvi que o acúmulo de anos, de relacionamentos e de histórias era um estoque inexorável de conhecimento, uma verdadeira preparação que o ciclo natural nos impunha para instruirmos e conduzirmos nossas relações em suas complexidades singulares e evolutivas.

Esqueceram-se de me segredar que todo esse cansativo condicionamento mental e emocional, muitas vezes de nada serve e para nada presta senão para fazer-nos penitenciarmo-nos por achar que permanecemos imensamente despreparados e incompetentes para lidar com as nossas próprias limitações, para criarmos laços maduros, densos e sinceros. Esqueceram-se de me dizer que enquanto nos condicionamos até fisicamente para os anos da maturidade, ficamos absortos em engano porque não há quem possa preparar-se para o imprevisto.

"Sim, nós podemos!" aprender a conhecer nossas reações, nossas deficiências e dirigir nossas ações a fim de que elas moldem o nosso caráter. "Sim, nós podemos!" escolher a forma como nos portaremos ainda que não nos seja dado escolher a estrada que trilharemos. Sim, nós DEVEMOS separar tempo para o autoconhecimento e intensa, constante, interminável e árdua tarefa de sermos absolutamente sinceros conosco, assumindo todos os nossos defeitos, desvios de caráter, todos os desejos impronunciáveis e pensamentos despojados de qualquer virtude que vivem ao redor dos nossos ideiais antigos que, mesmo belos, foram sufocados pelo homem ingrato que acabamos nos tornando.

Se tornamo-nos ingratos é porque deixamos orgulho, vaidade e ira apossarem-se dos nossos punhos para serem os vigadores da nossa fama. Mas volto a dizer o que não me disseram: nós podemos. Moldar o caráter é sim uma tarefa diária e de uma vigilância constante. Ainda que o seu desejo mais natural, que o seu instinto mais profundo seja o de querer bem, o de ser estritamente ético e inabalável, isso não é definitivo. Ainda que a bondade seja seu sobrenome, ainda que o mal pronunciar jamais tenha feito parte do seu vocabulário até hoje, tenho certeza ao dizer que moldar o caráter é sim uma tarefa diária e inacabada.

Nossas boas intenções sempre serão tentadas, nossa ética sempre será colocada à prova, nossa vaidade sempre será instigada até o dia em que uma fresta permita que a despressurização dê início à nossa queda.

Meus amigos, o caráter é MUTÁVEL e isso é bom. Bom para que saibamos que nenhum bem existente em nós procede de nós mesmos, bom para que saibamos que somos propensos a querer o mal, a cobiçar a riqueza alheia e que, mesmo diante dos deslizes que essas deficiências podem carregar, ainda temos chance de recomeçar e termos os nossos caráteres remodelados para buscar uma reação diferente quando a vida nos aprontar outra de suas imprevisões.

Até hoje a minha história de vida não me permitiu ser equilibrado, coerente, manso ou sábio para aconselhar e confortar os conhecidos a quem amo e os desconhecidos que posso vir a amar. Sei apenas que tenho precisado, ou melhor, tenho tido a mais extrema NECESSIDADE de conhecer-me profundamente, em ter meus instintos perscrutados, meus sonhos verdadeiros descortinados para poder assumir-me diante de mim e dos outros sem enganos, sem estratégias de conquista, sem aparência de promessas que não poderei cumprir.

Definitivamente, ou pelo menos por hoje, não quero experiência nem conselhos a dar, quero apenas e como nunca conhecer os segredos do meu coração, os espasmos da minha alma e, com isso, definir meu caráter.

Um comentário:

PJ disse...

Alívio...ao ler e passar a crer que o caráter é mutável.
pq assim fica justificável viver, duvidar, chorar e não precisar encenar e poder escolher...pq...

"eu sei que se tocasse
com a mao aquele canto do quadro
onde um amarelo arde
me queimaria nele
ou teria manchado para sempre de delirio
a ponta dos dedos
as vezes o amor é essa mancha de delirio,
mas a esperança está na certeza
de que a alma da gente
tem mais de quatro cantos
e muito mais de vinte dedos

ferreira gullar

eu sei que